O passado é um imenso pedregal que muitos gostariam de percorrer como se de uma auto-estrada se tratasse, enquanto outros, pacientemente, vão de pedra em pedra, e as levantam, porque precisam saber o que há por baixo delas.
José Saramago

30 de dez. de 2008

Uma pessoa agradável

Não, não é uma pessoa desagradável, pelo contrário. Tem uma postura calculadamente educada, sabe escolher muito bem as palavras, incapaz de confundir admitir com confessar, num português corretíssimo e sem gírias e demonstra, impassivelmente, um grande autocontrole – enquanto eu nem sei se com a reforma ortográfica que chega em alguns dias grafaremos autocontrole assim... Nunca eleva a voz ou trai alguma emoção, prefere um tom quase monocórdio e sem pontos finais nas frases, no máximo um ponto e vírgula, resultado de mais de 30 anos de treino na política. Fala muito e ouve pouco, como todos na família, e quase sempre sobre assuntos que só interessam a ele mesmo, mas não faz de propósito: quer, na verdade, preencher os silêncios que incomodam quando alguém nos incomoda. Objetivo e polido, facilitou bem as coisas. Eu, relaxada enquanto ele falava, podia me distanciar para analisar a mim mesma. E não, para minha surpresa não fiquei tensa, não fiquei chateada, na verdade não fiquei nada. Não localizei nem a sombra de uma emoção escondida, ou de algum rancor, muito menos de uma alegria, fora o fato de ele ter raspado o ridículo bigode. Fiquei apenas com o vazio de emoções de quando somos obrigados a trocar palavras com algum desconhecido e a afinidade é suficiente apenas para comentários vagos sobre futebol, especulações sobre as mudanças climáticas e alguma opinião política, desde que bem frouxa, que é pra não gerar polêmica e não azedar a conversa. Nada demais, se considerarmos que nos últimos 35 anos nos encontramos 3 ou 4 vezes, no máximo, e nunca tivemos algum assunto mais prático ou mais próximo. Já não tínhamos, em realidade, muitas afinidades quando éramos crianças, ele o desengonçado gordinho e tímido, eu a bonequinha extrovertida, encantadora e cheia de amigos. Quando a barra pesou no enredo nelsonrodriguiano da família, o aluno brilhante que devorava livros de filosofia abandonou a escola secundária e mudou-se para o Amazonas, terra de cegos e desdentados em que logo virou rei, como estava escrito. Eu, para seguir a vida, decidi olhar pra frente – o que fiz sem me virar pra trás. Agora somos obrigados a nos encontrar novamente, ambos entrando na velhice, em vidas irremediavelmente separadas. E fiquei feliz em comprovar que ele, também, não me fez a menor falta.