O passado é um imenso pedregal que muitos gostariam de percorrer como se de uma auto-estrada se tratasse, enquanto outros, pacientemente, vão de pedra em pedra, e as levantam, porque precisam saber o que há por baixo delas.
José Saramago

27 de dez. de 2008

Lembranças amargas

Claro está que ando amarga, motivos não me faltam, e as lembranças da amargura são mais precisas e mais fáceis, pois exatamente por serem lembranças foram fatos superados com um certo sabor da vitória – ao contrário dessas, as lembranças doces se fazem acompanhadas de saudades, o que às vezes dói. Mas meu aguçado senso crítico me lembra que a justiça e o dever exigem que se diga que a relação com minha mãe não era de todo má, pois não fui criança de apanhar com chinelo, cinta ou chicote, mal e mal levei uns tapinhas. Devo atestar ainda que a minha foi uma infância feliz, com o privilégio de boas casas, boas escolas, um cachorro, bons vizinhos e muitos primos, nem todos bons, é verdade. E, se faltaram demonstrações de afeto por parte de minha mãe, só pude perceber isso observando em retrospecto, nessa minha tentativa de resgatar lembranças, boas ou más – e esse afeto talvez não tenha feito muita falta, no final das contas, já que sobrava carinho de meu pai e, sobretudo, a atenção de minha avó, uma mistura de bruxa e anjo da guarda que povoou a minha meninice.
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Neste momento puxo os fios da memória em busca das lembranças doces e agradáveis, sabe-se lá de que é capaz nossa cabeça na hora de engavetar os fatos da vida, lá atrás o que devemos esquecer mas não podemos, aqui na frente o que queremos lembrar mas já não conseguimos. Minha memória foi sempre seletiva e os fatos realmente tristes, violentos ou desagradáveis estão lá, sem dúvida, mas desbotados por um véu, na verdade grossa e pesada cortina, atrás da qual a memória é como um filme assistido e esquecido há tempos, e do qual restam apenas alguns fragmentos. Já os fatos alegres e felizes, as histórias engraçadas, as piadas em família, esses estão nas gavetas da frente, bem à vista e à mão, mas não encontro nelas muitos rastros de minha mãe.
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Sem amargura ou ironia, puxo pela memória e consigo elencar as heranças que recebi dela: além da voz grave e poderosa e dos traços de beleza morena – amenizados, é claro, pelos genes de meu pai – recebi de minha mãe o senso de humor e os de proporção e de composição, uma dose extra de criatividade e muita habilidade manual, o que não é pouca coisa. Meu gosto pela palavra, minha sensibilidade para o que é belo e a minha vontade de conhecimento herdei de meu pai, não sei se pelo DNA ou se pelo exemplo. A paixão por viagens e minha atração pelas alquimias da cozinha foram presentes de minha avó. Recebi de todos também vários defeitos e entre eles se destaca a teimosia, mas essa eu mesmo cultivei, aprendi cedo que era característica utilíssima na hora de marcar minha vontade numa infância marcada pelas críticas, pintava o elefante de cor de rosa por pura teimosia.
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Amarga como estou agora, os rostos alegres e sorridentes que desfilam pelo aeroporto são para mim puro acinte, como uma lembrança cruel de que não estou ali para um excitante embarque a Paris ou para receber de volta um filho querido. Espero no aeroporto, gripada, exausta e triste, pela chegada de meu único irmão, um desconhecido.

Amor condicional


O fato de ter sido parida não foi garantia de amor incondicional. Amor de filha pra mãe não é transmitido pelo cordão umbilical, nem fica armazenado na placenta que nos alimenta, placenta, é bom que se lembre, que é deitada fora logo após o parto – só muito recentemente na história da humanidade descobriu-se alguma serventia, cosmética, para aquela peça sanguinolenta e meio disforme. Amor filial, sabemos, é cultivado e regado, se não diariamente, com a freqüência que dita o bom senso e em dose necessária para que o que se cultiva não morra de sede ou não se afogue. E o esforço maior, a proteção e a atenção indispensáveis sempre são do adulto, crianças são cruéis por natureza e precisam de lições freqüentes não apenas para a obediência, mas, e sobretudo, para o respeito e a admiração – que com o tempo se transformam na maior de todas as virtudes, o amor, seja ou não a recíproca verdadeira.
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Minha mãe não soube cultivar para colher mais tarde. Não me lembro de carinhos ou de colos, nem sequer de cuidados especiais nas pequenas ou nas grandes doenças. Nas febres, é verdade, era diligente em medir com freqüência minha temperatura e cuidava para que eu seguisse as prescrições médicas, mas sem esforços para distrair ou amenizar meus sofrimentos – e não permitia que se fizesse manha por causa da dor de garganta, doença é assim mesmo, daqui uns dias passa. Na lembrança não encontro mimos, apenas as pequenas e ferinas críticas, as alfinetadas disfarçadas, o indisfarçável ciúme e uma incrível competição.
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Ela sempre fazia questão de me lembrar que eu desafinava, sua voz poderosa me mostrava o dó corretamente cantado, e provava que eu trocava os acordes ou os dedos ao dedilhar o violão, seus dedos eram ágeis ao piano. Mostrava que meu desenho era ligeiramente desproporcional, que as cores de minhas pinturas infantis não combinavam ou que estavam erradas, onde já se viu elefante rosa, e que sempre era possível preencher com mais perfeição os livros de gravuras para colorir que ela mesma me dava. Sim, porque minha mãe sempre incentivou meus dotes artísticos – e creio que eu tinha alguns – mas dava um jeito de provar que ela própria era a artista da casa e podia fazer bem melhor, à parte o fato de eu ter apenas 10 anos e ela quatro vezes mais. Também incentivava minha vaidade feminina, penteando com força desproporcional meus cabelos finos e lisos e me fazendo ou comprando roupas boas e bem cortadas. Mas se alguém se encantava com minha beleza de menina ela logo emendava o comentário de que eu era uma cópia dela própria, e embora não tivesse a coragem de acrescentar o “apenas”, emendava um Eu era bem mais bonita nessa idade, uma verdade pura e simples - e fácil de se comprovar com fotos que logo apareciam.
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Aos 15 anos tive a sorte de encontrar um príncipe encantado – e essa é uma outra história – e um ano depois fugi no corcel branco para outro estado e outra família. Minha mãe perdeu o prazo mínimo para me conquistar, mas ainda conseguiu azucrinar minha vida por muitos anos.