O passado é um imenso pedregal que muitos gostariam de percorrer como se de uma auto-estrada se tratasse, enquanto outros, pacientemente, vão de pedra em pedra, e as levantam, porque precisam saber o que há por baixo delas.
José Saramago

21 de jan. de 2009

Uma menina em apuros (3)


Nós a vimos no dia 31 de dezembro de 1993, estávamos em São Paulo na viagem habitual de fim de ano. Lembro que nos recebeu no pequeno hall do grande galpão onde dava aulas de sânscrito e tai chi chuan e que o francês, que beirava os 80 anos, fazia uma figura meio patética, entrando e saindo do pequeno espaço para repetir a pergunta, Onde está meu quimono? Ela respondia com doçura, O quimono está atrás da porta do quarto, mas de repente decidiu que o melhor era continuar nossa conversa no pequeno jardim cheio de mato da entrada – tive certeza de que ela estava ligeiramente constrangida pelas demonstrações de caduquice do velho companheiro. Não lembro com certeza que roupa ela usava, mas acredito que era uma bata branca, dessas indianas que todos nós vestíamos uma década antes. Os cabelos eram imensos, sem viço e sem brilho, cheio de pontas quebradas, lambiam a cintura. Nunca fui mulher de luxos de salão, não faço unhas nem diminuo as sobrancelhas, ela também não. Mas as sobrancelhas dela estavam especialmente espalhadas, despenteadas e caídas, aumentando o efeito olho-de-peixe-morto.
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Muito magra e de aparência frágil, simpática e calma, perguntava com sincera curiosidade e uma certa alegria sobre assuntos corriqueiros, queria saber detalhes da vida dos meus filhos, eu tinha três: dois adolescentes e a rapa do tacho, naquela altura já com 6 anos. Chegamos a fazer combinações de encontros e viagens, mesmo sabendo que dificilmente se realizariam. Contou que talvez adotasse uma criança, mas não queria antecipar detalhes, não é bom falar sobre planos assim importantes, se falarmos muito, não se realizam. Às tantas começou a demonstrar pressa, se usasse um relógio desviaria o olhar constantemente para o pulso, mesmo sem o relógio sentimos que nossa visita estava se estendendo mais do que o previsto. Nos despedimos e é mentira se eu disser que tive algum pressentimento de que era nossa última conversa, ou algo parecido.
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Na última semana de abril de 1994 recebi um telefonema da mulher de meu pai: minha irmã estava internada em estado grave, no Hospital das Clínicas da USP – sorte ela ser da universidade, recebia tratamento de primeira linha. Apenas quando cheguei em São Paulo soube que era uma metástase adiantada, um imenso tumor crescia na nuca há mais de um ano, a cabeleira negra e desgrenhada escondia. Para tratar a doença, apenas infusões e banhos receitados pelo francês velho – note-se que agora o adjetivo muda de lado na frase, uma coisa é dizer velho francês, denota algum carinho, outra bem diferente é dizer francês velho, carinho algum. Além das águas e das rezas, havia sessões de acupuntura e homeopatia - o câncer foi crescendo a base de florais. A mulher de meu pai só descobriu a doença porque minha irmã faltou a um encontro marcado para conhecer uma criança candidata à adoção. Sem conseguir falar com minha irmã ao telefone por uma semana – o velho não chamava e não dava explicações – a madrasta, não o pai, atravessou a cidade para procurá-la pessoalmente no galpão esotérico. Só depois de muita discussão e ameaças de chamar a polícia teve acesso ao interior do prédio. Encontrou minha irmã semi-inconsciente na cama, pesando pouco mais de 30 quilos. Minha irmã morreu no dia 1º de maio de 1994, aos 30 anos.
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Herdei dela apenas a ampliação de uma foto 3 x 4, estão lá os olhos tristes e a cabeleira meio desgrenhada, e a agenda pessoal, com pequenos lembretes e notas, muitas escritas em sânscrito. Até pensei em procurar ajuda para uma tradução, ainda que literal. Depois percebi que sabia muito pouco daquela vida, de que adiantaria tentar desvendar o que foi tão importante nos últimos meses - ao ponto de ser grafado na língua morta que nem o francês dominava? Deixo as palavras dela, escritas com letras que não posso decifrar, bem guardadas no fundo da minha gaveta.