O passado é um imenso pedregal que muitos gostariam de percorrer como se de uma auto-estrada se tratasse, enquanto outros, pacientemente, vão de pedra em pedra, e as levantam, porque precisam saber o que há por baixo delas.
José Saramago

9 de jan. de 2009

Uma menina em apuros (2)

Ela era espiritualizada e bem mística, uma salvação para quem, aos 14 anos, já tinha comido o pão que o diabo amassou – e pessoalmente. Tinha aulas de música, de ikebana e de Tai Chi Chuan, que ela praticava num imenso galpão no bairro do Itaim, estúdio, escola e moradia de um francês aclamado como o introdutor dos preceitos do Tai Chi e outras artes marciais em São Paulo – disso nunca teremos certeza, particularmente duvido que com tanto japonês por aquelas bandas fosse justo um francês o responsável pela moda que se iniciava em terras brasileiras. Fato é que o homem já tinha 64 anos e alguns netos e, dizia-se, dedicava a vida a letras esquecidas, à cítara indiana e aos tambores com nomes estranhos e sons nem tanto, além de várias modalidades de luta e meditação.
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O Galpão, grande e escuro, tinha divisórias de madeira criando um labirinto de corredores e salas, uma delas forrada de quadros negros com letras indecifráveis riscadas a giz, outra forrada de tatames, com lindas máscaras e espadas pelas paredes, e onde só se podia entrar descalço e em absoluto silêncio. O ar era pesado de poeira e falta de sol, mas o lugar não deixava de ter seu encanto. Foi pra lá que minha irmã se mudou quando venceu o aluguel do apartamento em que tentara viver com meu pai. O velho francês ofereceu a ela um colchão num quartinho e a oportunidade de virar aprendiz.
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Em poucos meses o mestre abandonou a esposa, nem sei se era a primeira, e juntou-se à minha irmã, para horror da família - a nossa e a dele - incapaz de compreender uma relação como aquela, um velho babão desfilando de quimono o dia inteiro com uma menina 50 anos mais moça, vestida como hippie e de olhar triste e envelhecido. Alguns anos depois, creio que assim que minha irmã adquiriu a maioridade legal, casaram-se de papel passado e tudo, aposto como houve também alguma bela cerimônia mística a que não fomos convidados.
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O que mais me surpreendeu nessa história foi a reação de meu tio avô, um avô por empréstimo, já que se casou com a cunhada, minha avó, quando ambos eram já velhos e viúvos, e a quem nunca conseguimos deixar de chamar tio. A única preocupação dele era fornecer pequenas quantias de dinheiro à minha irmã, o que fazia às escondidas para evitar atritos com minha mãe, essa insistia que a filha é que era a ingrata. Tinha ele medo de que a menina permanecesse no galpão com o francês por pura carência financeira, se fosse por querência tudo bem. Minha mãe enfureceu-se anos a fio, mas nada pôde fazer a respeito, as duas não se falavam e permaneceriam assim até o fim da vida. Meu irmão bem que tentou intervir e reatar o diálogo entre as duas mandando longas cartas tão ponderadas quanto sem efeito, frases que eram rasgadas antes de lido o segundo parágrafo. Eu tratava de fingir naturalidade no trato com o casal, se bem que o francês se dispensava rapidinho da minha companhia.
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Minha irmã, de aprendiz virou mestre, entrou para o curso de letras na USP e formou-se em sânscrito, língua utilíssima para quem se decide ter uma vida que não será compartilhada com ninguém, muito menos compreendida. Nos víamos apenas quando eu viajava a São Paulo, o que ocorria uma ou duas vezes por ano, recebia a mim e à minha família com paciência e candura, mas sem grandes intimidades, nunca conheci o quarto que compartilhava com o marido. As crianças ficavam por ali enquanto conversávamos, se divertiam entre as salas forradas de tatames, tirar os sapatos era fácil, o difícil era evitar o barulho.
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A relação dela com o irmão foi se diluindo até desaparecer, a conversa era impossível, uma querendo esquecer e sobreviver, outro querendo lembrar e reconstruir laços esmigalhados da família, vomitando sem deglutir regras de convivência e tolerância. Chegou ao cúmulo de tentar promover um encontro de amor e perdão da progenitora com os filhos num segundo domingo de um certo maio. Minha irmã e eu tivemos reações parecidas, soube depois, ambas desligamos o telefone no meio da proposta absurda. O único vínculo mais estreito de minha irmã com nossa nelsonrodriguiana família acabou sendo com a mulher de meu pai, moça apenas 5 anos mais velha do que ela própria, interiorana e simples. As duas se falavam de vez em quando ao telefone e a madrasta, que era assistente social de uma prefeitura da grande São Paulo, estava ajudando minha irmã no processo de adoção de uma criança, nem sei se menino ou menina. Mas não houve tempo.

Falta pouco

O destino, como garantem que ocorre com Deus, escreve certo por linhas tortuosas, se eu tivesse viajado teria encontrado a casa mofada, o quarto de casal debaixo d’água e o banheiro social destruído, parte do reboco do teto despencou sem aviso prévio sobre pia, chão e privada – tudo, frascos, cremes, plantas e bijouterias esquecidas, ficaram cobertos de terra e entulho. Fiquei e pude pôr em dia – o acento nas conjugações do verbo não caiu, ninguém entende porquê – vários assuntos, troquei o celular, mandei reformatar o computador, mudei o plano de telefonia e contratei nova operadora de TV a cabo, imenso prazer mandar a Net lamber sabão. TV a cabo é tudo igual, os mesmos filmes se repetem dia após dia, o que estava num canal ressurge em outro no mês seguinte, os programas de reconstrução da casa, do guarda-roupa e do corpo se espalham por uns 10 números diferentes, felizmente o controle remoto pode gravar os favoritos, dispensamos assim umas 50 emissoras. O teto do prédio também vai sendo consertado, mais de 40 telhas foram trocadas, falta substituir a calhas, mas já não chove como antes. Mais um fim de semana em casa, com direito a uma festa no sábado, na segunda-feira volto ao batente e poderei, enfim, descansar.