O passado é um imenso pedregal que muitos gostariam de percorrer como se de uma auto-estrada se tratasse, enquanto outros, pacientemente, vão de pedra em pedra, e as levantam, porque precisam saber o que há por baixo delas.
José Saramago

7 de jan. de 2009

Uma menina em apuros

Ela nunca foi linda, mas não era feia. A genética não foi tão simpática com ela, que herdou os traços de meu pai, amenizados pelos genes da beleza de minha mãe – comigo deu-se o contrário. Magra e bem feita de corpo, não tinha os cabelos lisos como os meus, mas tinha uma cabeleira negra e abastada que usava como as crentes: compridos, soltos e sem cuidados. Foi uma criança quieta e tímida, apegada a mim e ao cachorro da casa, sem mimos de pai ou mãe, ao contrário do que se espera acontecer aos caçulas. Por duas ou três vezes foi deixada na escola, é verdade que em pelo menos duas havia bom motivo, mas ninguém duvida de que uma criança que se esquece duas ou três vezes na escola, seja porque motivo for, é uma criança meio esquecida em nossa vida.
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Meu irmão era particularmente mau com ela, adorava vê-la desesperadamente triste, garantindo que ela não existia, era apenas parte de um sonho, e dele. Meu irmão insistia, Quando você acordar tudo se apaga, ela tentava duvidar lembrando os fatos do dia que somente ela conhecia, ele retrucava, Tudo é parte do meu sonho, quando eu acordar você e suas lembranças apagam, desaparecem para sempre. Minha irmã chorava e corria para o colo do pai, que ralhava com o filho mais velho, mas não deixava de achar graça e até de sentir certo orgulho daquela brincadeira cruel, mas muitíssimo bem bolada. Eu era 3 anos e meio mais velha, ainda assim brincamos muito juntas e só nos distanciamos um pouquinho no começo da minha adolescência, como ocorre com todas as meninas que menstruam, descobrem o inchaço dos seios e já não acham graça em brincar de boneca ou de fazer comidinhas.
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Quando meu irmão e eu decidimos sair de casa para escapar da louca rotina da convivência com uma mãe alcoólatra - meu irmão viajou 2 mil quilômetros, para mim bastaram 500 - minha irmã ficou sozinha no inferno, com apenas 12 anos de idade. Sei de muitos casos da triste vida dela, mas nunca saberei exatamente o que e o quanto ela sofreu, que surras levou, que torturas psicológicas passou, que dificuldades precisou enfrentar – minha imaginação não dá para tanto. Sei de vezes em que apanhou, sei da vez em que a porta do quarto, madeira maciça das construções sólidas de antigamente, apareceu com um imenso buraco feito à fúria por minha mãe – passagem que minha irmã escondeu com um cartaz da Janis Joplin. Sei de um violão quebrado, sei de roupas cortadas em pedacinhos com a tesoura, sei de comida com puro sal, pra que aprenda que Essa casa não é pensão onde você só aparece para comer e dormir. Mas minha irmã me contou pouco dessas histórias e evitava me pedir socorro, se recusava a vir morar comigo, até hoje acho que insisti menos do que deveria.
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Ainda menina, com 14 anos apenas, minha irmã ocupava seus dias das 6 da manhã às 2 da madrugada, entrava em casa descalça e em silêncio, esperança vã de que passasse desapercebida, ou despercebida como preferem os puristas, notemos que a desapercebida é a que não recebe cuidados, a despercebida é a que não se vê, minha irmã era as duas coisas. Numa madrugada minha mãe passou o ferrolho na porta, daqueles que não impedem a entrada de um ladrão, mas barram uma filha. A menina ainda avisou que não podendo entrar, não voltaria. Cumpriu a promessa, gavetas cheias de meias e calcinhas, livros e objetos nas prateleiras, caixas lotadas de papéis, armários com todo tipo de roupas, deixou tudo pra trás, não quis nem uma fotografia e nunca mais falou com minha mãe, nem ao telefone. Foi para a casa do pai, felizmente se dava bem com a madrasta. Mas não tardou nessa nova vida, belo dia encontrou incrível bilhete, Vou tentar a sorte no sul do país, pode ficar no apartamento, o aluguel está pago até o fim do mês. E há quem diga que Nelson Rodrigues tinha imaginação demais...

TV de 29 polegadas

Uma TV de 29 polegadas, tela plana. Parece anúncio de oferta do Ricardo Eletro, é meu irmão avisando que embarca de férias em Santa Catarina com a família, deixa a TV nova no lugar dele, na casa de minha mãe em São Paulo. O dela é um aparelho de boa imagem, mas de tecnologia e tamanho mais modestos, nem tem entrada para o DVD – também presente dele. Ela vai receber alta em breve, já dispensa o oxigênio e se aventura em pequenas caminhadas pelos corredores, uma ida até o pequeno televisor na sala de recreação do terceiro andar. Na alta, terá que subir três andares de escadas até o meu apartamento, impossível embarcá-la imediatamente para Sampa, nem há ninguém lá para recebê-la. Vamos ficar mais uma semana juntas em casa, felizmente será o fim das férias, minhas e da empregada, filho e filha também estão retornando das viagens, até o neto que desfila em Búzios volta logo, para alegria da Bisa.