O passado é um imenso pedregal que muitos gostariam de percorrer como se de uma auto-estrada se tratasse, enquanto outros, pacientemente, vão de pedra em pedra, e as levantam, porque precisam saber o que há por baixo delas.
José Saramago

26 de fev. de 2009

Meu irmão ao telefone

Meu irmão me chama ao telefone, avisa meu filho. Pego o aparelho já esperando ouvir um eco da minha própria voz – todas as nossas poucas conversas telefônicas tinham sido assim, era possível falar com alguém no Japão como se estivesse ali na esquina, mas as falas com a selva brasileira eram sempre intermediadas por estranhos ecos, de parte a parte. Enquanto estico a mão para alcançar o telefone penso que o eco de nossas vozes também pode ter contribuído para o nosso distanciamento. Éramos obrigados a articular cada palavra, pausadamente, e depois esperar a repetição da frase, o que, convenhamos, torna impossível um bate-papo informal, Olá como vai, Eu vou bem, e você? Mas a tecnologia evolui mais rápido que nossas lembranças e agora ouço bem clara a voz dele, Sabia que mamãe passou o dia de ontem no pronto-socorro? Não, não sabia.
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Os poucos segundos que ele gasta para me explicar o que ocorreu bastam para que uma enxurrada de sentimentos e pensamentos se atropelem na minha cabeça, segundos que preencheriam meio livro, dos que ficam em pé sozinhos na estante. No resumo, percebo que estou mais irritada do que preocupada com ela. Meus filhos passaram uma semana em São Paulo fazendo todas as vontades da avó, com direito a um mergulho nas águas de Santos – desejo que apenas os netos poderiam realizar, filhos não levariam uma idosa que acabou de sair do hospital para uma viagem que culmina com um mergulho gelado e poluído.
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Como assim? Os meninos chegaram de lá domingo, ela era pura energia, três dias depois está num hospital? Meu irmão conta que minha mãe começou a ter febre na segunda, Foi o mergulho em Santos, concluo. Ele ligou na noite de terça e notou uma voz cansada, quase embolada, desconfiou que fosse bebida. Ligou novamente na manhã seguinte, pra tirar a prova, mas ningúem atendeu. Minha mãe tinha ido à dentista, que notou a febre persistente e exigiu que ela entrasse em contato com a médica imediatamente. Meu Deus, meus pensamentos voam, E se ela não tivesse ido à dentista? O amigo que dorme na casa dela não serve nem pra avisar alguém em caso de febre? A médica, conta meu irmão, recomendou o pronto-socorro do convênio para exames de sangue e uma chapa do pulmão, O convênio não é tão horrível quanto ela diz, penso com meus botões. À noite, novo telefonema, quando soube que minha mãe tem uma infecção urinária e que o pulmão começa a ficar comprometido novamente, receitaram mais alguns remédios. Minha cabeça já pergunta, Será que ela está seguindo a imensa bula que escrevi, detalhando cada horário e cada dose? Nessa altura está tomando remédio umas seis vezes por dia, Será que o rapaz está vigiando? Minha irritação aumenta.
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Maninha, precisamos monitorar isso e talvez seja preciso você ir a São Paulo. Não sei se me irritou mais o“maninha” ou se foi a sugestão de que cabe a mim enfrentar as próximas rotinas hospitalares, sabemos que novas virão. Minha cabeça nessa altura ferve, como esse babaca machista ousa insinuar que cuidar da velhice é tarefa feminina? Ou será que o idiota pensa que o trabalho dele, que mama 17 salários por ano nas tetas da Assembléia Legislativa, é mais importante do que o meu, comum provedora celetista? O imbecil acha mesmo que eu tenho tanto tempo, tanto afeto e tantos recursos quanto ele? Tenho vontade de gritar, mas respondo apenas, e secamente, Vamos monitorar sim, mas se alguém tiver que ir a São Paulo, será você. Meu tom, gelado e categórico, não dá chance para um diálogo. Ele gagueja um Estava mesmo pensando em ir lá no feriado. Ótimo, faça isso.