O passado é um imenso pedregal que muitos gostariam de percorrer como se de uma auto-estrada se tratasse, enquanto outros, pacientemente, vão de pedra em pedra, e as levantam, porque precisam saber o que há por baixo delas.
José Saramago

27 de dez. de 2008

Amor condicional


O fato de ter sido parida não foi garantia de amor incondicional. Amor de filha pra mãe não é transmitido pelo cordão umbilical, nem fica armazenado na placenta que nos alimenta, placenta, é bom que se lembre, que é deitada fora logo após o parto – só muito recentemente na história da humanidade descobriu-se alguma serventia, cosmética, para aquela peça sanguinolenta e meio disforme. Amor filial, sabemos, é cultivado e regado, se não diariamente, com a freqüência que dita o bom senso e em dose necessária para que o que se cultiva não morra de sede ou não se afogue. E o esforço maior, a proteção e a atenção indispensáveis sempre são do adulto, crianças são cruéis por natureza e precisam de lições freqüentes não apenas para a obediência, mas, e sobretudo, para o respeito e a admiração – que com o tempo se transformam na maior de todas as virtudes, o amor, seja ou não a recíproca verdadeira.
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Minha mãe não soube cultivar para colher mais tarde. Não me lembro de carinhos ou de colos, nem sequer de cuidados especiais nas pequenas ou nas grandes doenças. Nas febres, é verdade, era diligente em medir com freqüência minha temperatura e cuidava para que eu seguisse as prescrições médicas, mas sem esforços para distrair ou amenizar meus sofrimentos – e não permitia que se fizesse manha por causa da dor de garganta, doença é assim mesmo, daqui uns dias passa. Na lembrança não encontro mimos, apenas as pequenas e ferinas críticas, as alfinetadas disfarçadas, o indisfarçável ciúme e uma incrível competição.
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Ela sempre fazia questão de me lembrar que eu desafinava, sua voz poderosa me mostrava o dó corretamente cantado, e provava que eu trocava os acordes ou os dedos ao dedilhar o violão, seus dedos eram ágeis ao piano. Mostrava que meu desenho era ligeiramente desproporcional, que as cores de minhas pinturas infantis não combinavam ou que estavam erradas, onde já se viu elefante rosa, e que sempre era possível preencher com mais perfeição os livros de gravuras para colorir que ela mesma me dava. Sim, porque minha mãe sempre incentivou meus dotes artísticos – e creio que eu tinha alguns – mas dava um jeito de provar que ela própria era a artista da casa e podia fazer bem melhor, à parte o fato de eu ter apenas 10 anos e ela quatro vezes mais. Também incentivava minha vaidade feminina, penteando com força desproporcional meus cabelos finos e lisos e me fazendo ou comprando roupas boas e bem cortadas. Mas se alguém se encantava com minha beleza de menina ela logo emendava o comentário de que eu era uma cópia dela própria, e embora não tivesse a coragem de acrescentar o “apenas”, emendava um Eu era bem mais bonita nessa idade, uma verdade pura e simples - e fácil de se comprovar com fotos que logo apareciam.
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Aos 15 anos tive a sorte de encontrar um príncipe encantado – e essa é uma outra história – e um ano depois fugi no corcel branco para outro estado e outra família. Minha mãe perdeu o prazo mínimo para me conquistar, mas ainda conseguiu azucrinar minha vida por muitos anos.

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