O passado é um imenso pedregal que muitos gostariam de percorrer como se de uma auto-estrada se tratasse, enquanto outros, pacientemente, vão de pedra em pedra, e as levantam, porque precisam saber o que há por baixo delas.
José Saramago

17 de jan. de 2009

Uma mulher forte

Ela é uma mulher forte, não há dúvidas, sob vários pontos de vista. Mimada pelo pai, glamour girl de sucesso, parou de estudar antes da faculdade para ser cortejada por rapazes bonitos, acabou casando com homem feio mas de família rica, daquelas que exemplificam o ditado: avô rico, filho nobre, neto pobre – ele era o filho nobre e esnobe, logo pobre, um homem culto, refinado e bem preparado, condenado a desenvolver uma terrível megalomania. Durante anos ela participou da fantasia dele, uma fachada de sucesso e sofisticação que escondia as frequentes derrocadas, casas amplas e muito bem decoradas, mas alugadas, carros de luxo que eram trocados assim que apareciam as cobranças judiciais. Desenvolveu uma vida fútil e vazia, numa época em que as mulheres eram, via de regra, sustentadas por seu homem, e nunca soube detalhes, ou não quis saber, da (péssima) situação financeira do marido. Comprava roupas caras e frequentava cursos de belas artes, mas não tinha dinheiro para as viagens que poderiam dar a base cultural para a boa educação que recebia. Bonita e sempre desejada, foi pivô de várias cenas de ciúme, nem sei se gratuitas.
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Nós, os filhos, nos acostumamos desde cedo com as brigas de casal em que nunca se ouviu a voz do marido – creio que era desses homens que sabem enlouquecer uma mulher com comentários ferinos e certeiros feitos entre dentes – enquanto ela gritava, urrava, chorava e quebrava objetos, algumas vezes estantes e armários inteiros, em sons estrondorosos que podiam ser ouvidos por todo o quarteirão. Apenas minha irmã, a caçula, permanecia sempre dormindo, tenho certeza de que não fingia, as crianças de 2 ou 3 anos não conseguem simular o sono profundo, creio que ela desenvolveu uma estranha defesa: um quase desmaio, um desligamento esquizofrênico do mundo, que a poupava de mais essa dor. Algumas cenas eram realmente assustadoras para nós, impossível pregar olho, mas me lembro que logo me acostumei ao barulho ensurdecedor, sabia que não resultaria nada mais sério, cão que ladra, urra, grita e espatifa objetos não morde, só me preocupava realmente, devo confessar, com as explicações e mentiras que teria que inventar no dia seguinte para os vizinhos, vida em comunidade tem dessas crueldades, todo mundo quer saber detalhes dos escândalos circundantes e todo mundo acha natural interrogar justo as crianças.
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Ambos já bebiam bastante naquela época, ainda que apenas “socialmente”, é bem verdade que os eventos sociais se sucediam, não falo de uma cervejinha, devia ser bebida de pobre, bebiam uísque – que era depositado em belas garrafas de cristal sobre o bar – rum cubano e dry martini, com direito à azeitona no fundo da taça de boca larga. Havia um piano de cauda em nossa sala, palco de inúmeras noitadas com artistas da MPB, pois nos anos 1960 televisão se fazia ao vivo, não existia ponte aérea noturna e o jeito era atravessar a madrugada bebendo e cantando, após as apresentações nos programas de sábado à noite na Tupi paulista. Nos mudamos para o Rio de Janeiro no ano do golpe militar, tínhamos um endereço nobre em Ipanema e as noitadas continuaram a todo o vapor, agora regadas não apenas pela boa música mas também pelo papo com os intelectuais que tentavam romper a dita-dura, a turma do Pasquim era presença fácil. A cada farra se seguia um escândalo do casal, virou rotina, minha mãe desenvolveu a estranha habilidade de fingir a maior naturalidade no dia seguinte, escondendo o inchaço dos olhos chorosos atrás de óculos escuros. Não cabe aqui – outra hora quem sabe eu conto – detalhar o que foram para nós os anos de chumbo, basta dizer que ao desastre político no país se somou a falência econômica da família, meu pai foi capaz de perder o resto da fortuna numa única noite de pôquer.
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De volta a São Paulo nos anos 1970, antes ainda da definitiva abertura política, fomos surpreendidos, certa tarde, por oficiais de justiça que vinham desocupar o belo imóvel alugado em que vivíamos. Minha mãe conseguiu, na base da choradeira e de muita chantagem emocional, ganhar o prazo de um dia – dia em que ficou sabendo que havia seis meses o aluguel não era pago, nem a escola das três crianças, nem a prestação dos dois automóveis, e que devíamos os tubos a alguns parentes mais endinheirados, ou menos falidos. Nesse período todo meu pai, o megalomaníaco, saía diariamente, em terno e gravata, para um trabalho que não existia. Nesse exato dia minha mãe decidiu concretizar uma idéia que devia ser antiga, queria o divórcio, palavra nova no Brasil, basta dizer que o deles foi o de número 5 em todo o país. Foi nessa época que ela começou, realmente, a beber. Os mais chegados pediam nossa compreensão de meninos, afinal não deve ser fácil ser uma mulher divorciada aos 43 anos, nos anos 1970, sem um amante ou um novo homem em vista e sem nunca ter trabalhado fora em toda a vida. Sem dúvida, uma mulher forte.

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