O passado é um imenso pedregal que muitos gostariam de percorrer como se de uma auto-estrada se tratasse, enquanto outros, pacientemente, vão de pedra em pedra, e as levantam, porque precisam saber o que há por baixo delas.
José Saramago

2 de jan. de 2009

A escrava do 316

São quatro camas na enfermaria 316. Na primeira, perto da porta, deita-se uma senhora com uma grande cicatriz na testa, resultado de uma cirurgia bem-sucedida para retirar um coágulo após um aneurisma – e me desculpem os puristas, ainda não decorei as regras, sei lá se bem-sucedida continua com hífen. Ao lado dela está uma velhota mignon, com rugas em xadrezinho, aparência de mais de 80 anos, um cartazinho informa que tem 68 e é paciente da cardiologia. A cama logo ao lado está vaga. E formando um L no quarto, debaixo da grande janela por onde entra o sol e pertinho da porta do banheiro, está a cama de minha mãe, a melhor de todas, sem dúvida, pois o canto garante bem mais do que a luz solar: tem mais espaço e uma certa privacidade. Minha mãe é a alegria do lugar, fala alto e mais do que pobre na chuva, acho mesmo que nunca a vi tão bem, conta casos e piadas e reúne pacientes de outros quartos para ouvi-la, já sabe detalhes picantes da vida de todos, incluindo a da filha da velhota amassada, a moça dorme numa cadeira de praia espremida entre as camas, não foi permitido que se deitasse no leito vago, vai que aparece mais uma...
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A mulher tem uns 45 anos e um rosto familiar e bem conhecido, cabelos mal pintados de um louro fosco, olhos carregados de lápis e rímel pretos, seios enormes dependurados numa blusinha tomara que caia - parece que já a vimos no quiosque que vende coco na praia, ou no balcão da pequena lanchonete do centro, ou como manicure no salão de beleza da esquina. É filha e é escrava da velhota amarrotada, que cochila o dia inteiro para exigir apoio em passeios absurdos pelos corredores às 4 da madrugada. Proponho a ela que aproveite minha presença para dar uma volta lá fora, o céu está azul depois de 7 dias com cor e peso de chumbo. Uma enfermeira aparece com alguns comprimidos e um copo d’água, a velhota mostra a ela que a lateral da cama está molhada, outro copo derramou-se por ali, mas a funcionária hospitalar é distante como dita a regra, resmunga um Vai secar logo, e sai. Pouco depois retorna a filha escrava, ficou longe nem meia hora, e ouço a velha reclamar com ódio, Você devia estar aqui, e a filha, já culpada, Por que? A velha raivosa arremata, Porque sim.
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Irritada porque os médicos aparecem pela manhã e as visitas são permitidas apenas à tarde, pedi meu crachá de acompanhante, quero entrar e sair quando me der na telha e tentar conversar com algum médico, ainda não vi nenhum - são como as baratas que aparecem não se sabe de onde e desaparecem ao menor movimento - ter um acompanhante é direito garantido pelo Estatuto do Idoso. A educada mas impessoal enfermeira-chefe diz que naquele hospital os acompanhantes são permitidos apenas quando o idoso tem uma situação de saúde delicada e dependente de cuidados permanentes, não é o caso, claro, dessa velha cheia de vida, falante e ativa, que toma banho sozinha e vai andando até a sala de TV, arrastando a bala de oxigênio com a ajuda da escrava da vizinha, que ela também já começa a manipular. Ou seja, um parente é aceito e até bem-vindo quando tem a serventia de reduzir o trabalho dos auxiliares e faxineiros, caso da filha escrava já nossa conhecida, é o que respondo a ela, e Quero meu crachá de acompanhante como me garante a lei, estou andando para as regras deste hospital, Tudo bem, senhora, vou providenciar.
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Numa dessas idas e vindas pelos corredores do hospital, retorno ao quarto e ouço minha mãe explicar para a escrava do 316, Minha filha não fica aqui o dia inteiro como você porque ela trabalha muito. Sabemos, nós duas, que estou de férias, mas nem eu, nem ela, fazemos a devida correção.

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