O passado é um imenso pedregal que muitos gostariam de percorrer como se de uma auto-estrada se tratasse, enquanto outros, pacientemente, vão de pedra em pedra, e as levantam, porque precisam saber o que há por baixo delas.
José Saramago

2 de jan. de 2009

Ponto final

É muito comum, mas quase ninguém acredita. As crianças não falam, os adultos não conseguem ver, ou não querem enxergar. E desconversam quando a própria criança vence o medo e a vergonha para tocar no assunto, afinal são afagos que confundem, carinhos de pessoas queridas. Como pode uma criança saber os limites reais e imaginários desses contatos físicos? A angústia infantil é a do desconhecimento e a da confusão. Por que determinados toques são prazerosos e outros provocam asco e, pior ainda, por que alguns resultam nas duas coisas ao mesmo tempo? Na adolescência é mais fácil discernir os sentimentos e já é possível se defender, embora fique ainda mais difícil falar com alguém a respeito – a capacidade de desacreditar uma pessoa jovem parece ser quase infinita. Minha juventude morreu, assassinada por um único toque, golpe traiçoeiro e cruel, quando eu tinha apenas 15 anos. Forjei-me adulta, mas foram precisos outros 30 anos para que eu pudesse falar sobre isso sem vergonha – ou sem culpa. Dedici por uma quase morte, impedindo a possibilidade de um novo encontro, já que a lembrança dos mortos é mais calma do que a dos vivos. Enterrei com um ponto final aquele ponto da minha trajetória, mas não fui eu quem assassinou uma relação. E não me peçam pela generosidade do perdão, tranquei essa memória numa das gavetas lá de trás, para que se enevoasse, mas não devo e não posso esquecer.

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