O passado é um imenso pedregal que muitos gostariam de percorrer como se de uma auto-estrada se tratasse, enquanto outros, pacientemente, vão de pedra em pedra, e as levantam, porque precisam saber o que há por baixo delas.
José Saramago

9 de fev. de 2009

A melhor avó do mundo

A mãe dos outros é sempre melhor do que a nossa, mas nossa avó é sempre a melhor de todas – a afirmação é verdadeira, mas nem por isso menos tendenciosa, pra começar a chance de termos grande afinidade com a avó é dobrada, avós são sempre duas, mãe basta uma. No meu caso, tive uma avó bem seca, de corpo e de sentimentos, mas a outra parecia personagem de Monteiro Lobato: robusta, alegre, boa contadora de histórias e cozinheira de mão cheia. A excelente avó não foi boa mãe, a julgar pelo desempenho dos filhos: o mais velho dedicado a esquemas para parecer mais rico do que (não) era, atolado em dívidas que cobraram a conta com um infarto fulminante antes de completar os cinquenta. A filha, mal casada e mal amada, afogou-se em álcool. Mas não se pode medir as habilidades maternas de uma mulher pelo resultado obtido nos filhos, a equação é muito complexa, há fatores que somam, que dividem ou que multiplicam, podemos citar o pai, o ambiente e a sorte, não necessariamente nessa ordem.
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A mãe fracassada era avó adorada e profissional bem sucedida. Em época de mulheres recolhidas à cozinha minha avó, viúva e com filhos crescidos, trabalhava numa editora de livros: lia e avaliava, na língua original, os possíveis futuros lançamentos. Chegou a cometer alguns livros didáticos, de pouco sucesso, é verdade, e encontrou um ovo de Colombo nos anos 1970, dava cursos de “atualização cultural” para paulistanas fúteis e podres de ricas. Minha avó resumia pra elas os fatos importantes da semana e os assuntos em destaque nas revistas. E improvisava aulas de geografia, português, história e artes, tudo para que a mulher do importante empresário não desse a ele o desgosto de um vexame na festa do clube Harmonia ou no jantar do Itamarati.
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Sem ambiente em casa, era para a dela que eu corria após a escola. Minha avó largava livros, agulhas e linhas para improvisar sofisticados lanchinhos na cozinha – foi assim que comecei a apurar o paladar. Era com ela também que passávamos as férias de janeiro e julho e os feriados prolongados, na deliciosa casa de Campos do Jordão. Saíamos para imensos passeios que começavam ainda com céu escuro, a boca soltando fumacinha na paisagem branca de gelo – e terminavam com o sol a pino, os casacos ensopados de suor e a fome roendo a barriga. Brincávamos com os filhos dos caseiros das mansões vizinhas e recolhíamos o pinhão que explodia nas araucárias, para vender em sacos transparentes até juntar o dinheiro para as quase diárias cavalgadas de pangaré.
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A característica mais marcante de minha avó, para mim, era a rapidez com que tomava uma decisão e se punha de pé para resolver o problema. Com uma energia incomum e um bom-humor constante, minha avó era a primeira a agir nas emergências e parecia sempre de prontidão. Era ela a mais presente se alguém precisasse de ajuda, fosse frio, fome ou sede – ou fosse uma prisão. Essa mulher determinada foi até a porta do DOI- CODI paulista centenas de vezes, levando jornais e frutas frescas que os carcereiros nunca fizeram chegar ao destinatário: um jovem estudante, filho de um grande amigo, ambos vítimas da ditadura militar. O rapaz foi solto quase um ano depois de preso, sem alguns dentes e sem alguns dedos – mas com a certeza de que não perdeu a vida por causa das visitas quase diárias à porta da tortura, os algozes ficaram confusos e até medrosos frente à teimosia corajosa e muda daquela velhota.
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Foi pra ela que pedi socorro também eu, incontáveis vezes, de manhã, de noite ou no meio da madrugada, sempre que minha mãe começava a gritar e a quebrar a casa nos surtos alcoólicos. Até hoje me espanta a rapidez com que ela atravessava a cidade para se materializar na nossa casa bem vestida, brincos de pérolas, cabelos brancos alinhados e um discreto batom. Era uma presença calma, mas enorme e decidida, que fazia minha mãe se calar imediatamente. E depois de enfiar a filha no chuveiro e na cama, e de catar todos os cacos de vidro, minha avó ainda encontrava tempo para nos visitar no quarto e sentar na beira da nossa cama para um bate-papo que afastasse nossa insônia. Nessas conversas tranqüilas e sem censuras minha avó me ensinou uma lição que nunca esqueci: após a tempestade começa tudo de novo, mas navegar é preciso.

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