O passado é um imenso pedregal que muitos gostariam de percorrer como se de uma auto-estrada se tratasse, enquanto outros, pacientemente, vão de pedra em pedra, e as levantam, porque precisam saber o que há por baixo delas.
José Saramago

16 de fev. de 2009

A menina não está mais em apuros

Peguei o primeiro avião para São Paulo – naquela época os vôos eram mais escassos, o primeiro avião partiu apenas na manhã seguinte à notícia, era um sábado. Lembro que deixei a pequena mala no corredor de entrada do apartamento de minha mãe, ela me esperava de camisola e sorrisos, Entre minha filha que eu fiz um café, eu na porta exigindo, Vamos logo para o hospital, qual o endereço desse hospital pelamordedeus! Pressa injustificada, é verdade, os hospitais têm horários rígidos para as visitas, não são como casas de parentes em que se entra sem pedir licença para gritar Desculpe o atraso de toda uma vida, minha irmã! Nos sentamos na estreita e fria sala de espera, na verdade uma fila de cadeiras fixas no corredor, observando o vai-e-vem de enfermeiras. Fiquei ali poucos e eternos minutos, nunca fui das que conseguem esperar muito, logo estava no posto de enfermagem pedindo notícias, explicações, detalhes e minúcias – naquela época, como hoje, uma pessoa articulada e nervosa chama logo a atenção da enfermeira-chefe.
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Os hospitais seguem uma rotina de hierarquia bem fixa, a cor e o talhe dos uniformes dispensam o crachá, as mocinhas de roupa verde são faxineiras ou meras auxiliares, as de jaleco branco e sapatos baratos sabem aplicar injeções, os de estetoscópio pendurado qual coleira são os chamados residentes, eufemismo para escravos de plantão, os médicos experientes são mais gordos, vestem belos e completos trajes brancos e andam decididos, às vezes nos dão a chance de um quase aceno, mas sem diminuir a passada. Assim como distinguimos imediatamente um balconista, um farmacêutico, um dentista e um médico – mesmo estando todos de branco dos pés à cabeça – também eles não confundem um pobre usuário do SUS com um cliente internado pelo salvador convênio ou um paciente particular. Minhas demandas furiosas no pequeno balcão poderiam se transformar num indesejado escândalo – e por isso mesmo resultaram na presença de um médico, estava claro que era alguém do topo da cadeia hospitalar. Antes mesmo de ver minha irmã encolhida na cama soube que ela tinha metástase de um câncer iniciado na corrente linfática, um enorme calombo imobilizava todo o pescoço, pulmão, intestino, mamas e útero estavam também comprometidos e uma tuberculose oportunista já estava instalada. O melhor a fazer agora é controlar a dor e permitir que ela tenha uma partida tranqüila, disse finalmente o doutor – e adivinhei um ligeiro tom de censura, como se o homem pensasse, num espelho dos meus próprios pensamentos, Por que a família deixou a doença chegar a esse ponto terminal?
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Nossa presença foi liberada sem restrições, que saíssemos do quarto apenas nos momentos de asseio, até os que estão morrendo têm direito à privacidade. Minha mãe logo aboletou-se à cabeceira, em carinhos desajeitados e inúteis nos desgrenhados cabelos, informando pela postura autoritária, Eu sou a mãe. Minha irmã estava lúcida e mantinha um estranho olhar esperto no rosto macilento da imensa cabeça que se destacava no corpo de Biafra, da camisola hospitalar pendiam braços e mãos de puro esqueleto. Parecia até que se divertia com toda aquela movimentação e um ligeiro esgar do canto da boca podia se confundir com um sorriso. Afastando a presença de minha mãe com meu corpo, perguntei num sussurro, Quer que ela saia? Minha irmã me olhou com olhos tranqüilos e respondeu, alto e bom som, Ela não pode mais me atingir ou me alcançar. Foi com uma força descomunal, e não por fraqueza física, que aquela menina esquálida e corroída pelo câncer permitiu que minha mãe se perdoasse naqueles momentos finais.
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Fiquei em São Paulo dois ou três dias, meu irmão também apareceu, não vi meu pai – alegava uma saúde muito debilitada, é bem verdade que o homem continua vivíssimo passados 15 anos – e se fazia representar pela boadrasta. O francês velho surgiu no segundo dia, trocou um olhar de fúria com minha mãe, que deu passagem a ele e saiu do quarto. Minha irmã me olhou e pediu, Fica. Fiquei para ouvi-la dizer ao velho, sem mais delongas, Saia da minha vida agora, por favor. O francês obedeceu e parecia realmente triste. Até hoje não sei exatamente o que significou aquilo, às vezes penso que a menina estava dizendo ao velho, Já paguei com juros tudo o que devo a você. Outras vezes penso que era apenas o rancor da morte que se aproxima – o velho ia sobreviver à menina. E há vezes em que penso que minha irmã percebeu, tarde demais, que era falsa a promessa de cura à base de florais, banhos de ervas e acupuntura.
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Ela pareceu melhorar e ganhar um pouco de cor, podia erguer ligeiramente o corpo e até tomar algumas colheradas de sopa rala. Quis ficar com meu irmão a sós alguns minutos, não sei o que disse a ele. Depois ficamos sozinhas no imenso quarto branco, mal conseguia segurar a mão dela, medo de que os ossos se desprendessem ou partissem em pedacinhos. Perguntou sobre minha casa e minha família, trocamos promessas falsas de vida futura juntas, um quarto só pra ela, ou talvez uma cama no quarto de minha filha. Antes de eu sair correndo para o aeroporto minha irmã ainda me chamou para dizer que tinha poucos arrependimentos na vida, o maior deles era não ter se dado a chance de viver mais – e perto de mim. Voltei a São Paulo no sábado seguinte, ela já estava no mais barato, infantil e ridículo caixão branco, não vale a pena gastar dinheiro com coisas assim.

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