O passado é um imenso pedregal que muitos gostariam de percorrer como se de uma auto-estrada se tratasse, enquanto outros, pacientemente, vão de pedra em pedra, e as levantam, porque precisam saber o que há por baixo delas.
José Saramago

9 de mar. de 2009

Aparências enganam

As pessoas conformadas podem ser mais felizes. Certa vez eu ouvi minha avó, mulher culta e existencialista, fã de Sartre e Simone de Beauvoir, formular essa estranha teoria. Minha avó pensava especificamente nas mulheres, num raciocínio aparentemente simplista: as que se resignavam ao destino de casar com homens escolhidos pelos pais e criar uma penca de filhos – sem mais preocupações do que a administração de uma casa – aparentavam ser mais felizes do que as que idealizavam o amor romântico e se metiam no mundo masculino, leia-se o mundo do estresse dos negócios, das preocupações políticas e das dúvidas ideológicas.
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Minha avó enumerava alguns exemplos na própria família, citando a própria avó e algumas tias velhas, todas dedicadas exclusivamente à família em casamentos arranjados – mas aparentando grande alegria e jovialidade. Em oposição, as irmãs mais velhas de minha avó tinham ar de permanente angústia e uma vida solitária, apesar do sucesso no próprio negócio e de uma certa projeção – se bem que a “fama” era mais baseada na maledicência do que no reconhecimento. É que meu bisavô fez questão de educar com os mesmos padrões os filhos e as filhas, algumas foram as primeiras mulheres da geração a cursar direito ou engenharia. Essas mulheres, embriões do futuro movimento feminista, mantinham uma escola, escreviam artigos em jornais e revistas, compravam briga com a Igreja e com os valores dominantes e se metiam em discussões políticas. Ficaram sem amigas e acabaram solteironas – não havia homem que encarasse viver com mulher capaz de discutir qualquer assunto de igual para igual.
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É um pensamento assustador analisar as drásticas mudanças nos papéis femininos que minha avó vivenciou, no curto espaço de uma vida. Já idosa, me dizia que ao abrir novos caminhos criamos bifurcações - e a cada encruzilhada corresponde uma decisão e uma angústia. Quanto mais possibilidades surgirem, maiores as dores e as responsabilidades. Portanto, aqueles que seguem numa linha reta e sem surpresas ao longo da vida, os que não questionam os caminhos traçados pelo destino, esses sempre hão de parecer mais felizes. E arrematava, com um meio-sorriso: o problema é que as aparências enganam...

Um comentário:

  1. Querida,
    li todo o blog de uma tacada (e de baixo pra cima, claro). Não consegui parar até ler esta última postagem...

    Tirando os aspectos biográficos - que muito me impactaram -, acho que você escreveu com uma clareza de que não me recordo ter percebido anteriormente. Não sei se por displicência minha ou pelo fato de você ter escrito sabendo que não seria lida. Ou ainda, quem sabe, pela gravidade dos momentos vividos; pela fase de sua vida pessoal ou porque esta é mais uma habilidade sua, mineiramente escondida...

    Mas posso dizer, com a sinceridade de quem pouco entende do assunto, que está muito bem escrito. E não só em termos literários, formais ou técnicos. Falo de conteúdo. E de expressão de uma voz feminina espantosamente liberta.

    Sobre o que chamei de "aspectos biograficos" vou fazer um comentário, por e-mail.

    Um beijo do seu único leitor, por enquanto...

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