O passado é um imenso pedregal que muitos gostariam de percorrer como se de uma auto-estrada se tratasse, enquanto outros, pacientemente, vão de pedra em pedra, e as levantam, porque precisam saber o que há por baixo delas.
José Saramago

16 de mai. de 2009

Férias de julho

Tem tempão que não passo por aqui, minha angústia ficou vagando na web... Amigo, desses que a gente conhece tem pouco tempo mas é desde criancinha, fez uma visita – e ainda teve a delicadeza de deixar belas palavras. As outras, mais certeiras, mandou-as diretamente pra mim. Passei para reler e percebo que hoje estou novamente, e como quase sempre, muito distante daqueles fatos. Ficaram apenas as palavras, eu trocaria uma aqui, outra ali, cortaria duas frases, acrescentaria mais algumas – já mais preocupada com a forma e o estilo do que com o conteúdo. Inventar não é possível, bem sei, não serviria pra nada um rol de memórias inventadas, basta saber que a nossa cabeça é seletiva o bastante para aumentar alguns pontos num conto, ou para esquecer roteiros inteiros. Pois bem, a história continua.
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O Natal, sempre dei jeito de passar com a nova família, aquela cena de Os Waltons – pai na cabeceira, filhos à volta da mesa, comida farta e fartos sorrisos, boa noite Mary Helen, boa noite John Boy – era mágica pra mim, como uma lembrança boa da infância, mesmo que não da minha. Para a casa de minha mãe íamos no fim de ano e nas férias geladas de julho. Em uma dessas idas carregamos o primeiro filho e primeiro neto, bebê de quatro meses. Minha irmã, que ainda não havia sido expulsa de casa, expulsou-se com alegria para o quartinho dos fundos e improvisamos um colchão no chão do quarto dela, outro pequeno para o pequeno, almofadas fazendo o devido cerco.
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Minha mãe nos recebeu já meio tonta, claro que de pura alegria, voz ainda mais grave e pastosa, gestos amplos e passos lentos. Depois de uma viagem de 500 quilômetros num fusquinha, com o corpo meio quadrado e a roupa suja de vômito de bebê, convenhamos que é difícil manter o humor. Mas depois de um banho quente e de ver o menino finalmente dormindo, tive a impressão de que o passeio a São Paulo seria bom no final das contas, uma pausa necessária numa rotina insana de estudante sem recursos nem para pagar uma faxineira. Sem parentes perto com quem contar, eu era daquelas moças que carregam o bebezinho para os lugares mais absurdos, debates em sala de aula, compras no supermercado e até um (raro) chop no barzinho. Quem vê cena parecida hoje em dia logo critica, Casal com filho novinho tem mais é que ficar em casa! Já eu, olho a mãe e me lembro, é mesmo difícil ter 18 anos com vida de 30.
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No dia seguinte, minha amiga nos convidou para jantar. A proposta era reunir alguns velhos amigos, bate-papo de adultos sempre é melhor sem criança. Nunca havia me separado do bebê, mas todos insistiram que não tinha erro, ficaríamos fora poucas horas, havia até uma mamadeira na geladeira com o leite do peito e era mesmo uma oportunidade rara para me distrair da maternidade precoce. Minha mãe garantiu que não tomaria gota de álcool, mesmo assim vasculhei os armários sob a pia e repassei mil vezes as recomendações, Me liguem assim que ele acordar, basta ninar um pouquinho, de lá aqui são 15 minutos.
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A comida nem havia sido servida quando o telefone tocou e minha amiga veio correndo avisar, É urgente. Do outro lado da linha ouvia-se minha irmã menina aos berros, meu filho urrando com a fúria típica dos bebês, e podia-se ouvir também – e sobretudo – a voz irritada de minha mãe tentando arrancar o telefone ou o menino dos braços da filha. Lembro apenas que entrei em casa aos pulos para encontrar minha mãe esmurrando a porta do quarto, trancada por dentro por minha irmã. Meu marido afastou a sogra e a menina, trêmula, liberou nossa entrada – mas não vi o bebê. Foram 10 segundos de puro terror, Onde está meu filho!... até ouvir o som abafado do choro do menino, dentro da rouparia, acomodado entre as malhas de lã.
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No espaço de meia hora minha mãe havia entornado quase uma garrafa de vodka e resolveu ir ao quarto checar o sono do bebê. A bêbada logo acordou o menino e resolveu oferecer a mamadeira, que estava gelada e com uma tampinha. O bebê urrava – e não era de fome – a bêbada empurrava o bico de borracha vazio. O bebê esperneava, a bêbada tentava ninar o menino, mas caiu no chão com o pequeno no colo. Minha irmã, apavorada, conseguiu resgatar o sobrinho. Ao ver a fúria de minha mãe em vias de arrombar a porta do quarto, não teve dúvidas: guardou o menino no armário e escondeu a chave.
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Passei aquela noite deitada ao lado de meu filho, pedindo perdão, chorando e jurando baixinho que nunca mais ele ficaria sozinho com minha mãe. Meu marido passou a noite em claro, conversando pacientemente com a sogra na sala, em tentativa inútil de caseira psicoanálise. Hoje sei que foi um gesto de pura generosidade. Naquela noite, no entanto, sofri mágoa profunda por ele gastar tanto tempo e energia com aquela que era minha inimiga, muito mais do que minha mãe.

Um comentário:

  1. Amigo de pouco tempo (desde criancinha) saiu de sua angústia (da web e de outros lugares) para ler/reler o que só existe aqui. Cada vez menos preocupado com a forma e o estilo - mas enfaticamente reiterando opinião anterior - e cada vez mais interessado na história e nos "aspectos biográficos" da história de sua amiga; de pouco tempo...

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