O passado é um imenso pedregal que muitos gostariam de percorrer como se de uma auto-estrada se tratasse, enquanto outros, pacientemente, vão de pedra em pedra, e as levantam, porque precisam saber o que há por baixo delas.
José Saramago

22 de mai. de 2010

Minha mais nova quase irmã

Desde que recebi a mensagem cheia de ódio de minha jovem irmã penso se devo responder. A moça não tem 20 anos, mas já amargou metade da vida cuidando do velho e amantíssimo pai. Sente adoração genuína por ele, que certamente corresponde a esse amor com sincera gratidão. Minha irmã culpa a mim por uma ausência que chama de cruel, não me odeia pelo próprio abandono – é o que diz – , mas pelo sofrimento que impus ao pai, vítima de longa e sofrida doença. Releio as mensagens que enviei a ela, na esperança de fazê-la compreender o que nem eu mesma entendo, mas vejo que escrevi frases confusas e cheias de parábolas que nada dizem – exatamente porque recusam clareza. A resposta, destilando amargura, foi no entanto bem clara: decreta o fim de nossa ex-futura amizade.
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Como dizer a essa menina meiga e triste, tão devotada ao velho e carinhoso pai, que também eu já o amei com amor imenso? Como contar que era ele meu único e melhor amigo? Que também eu me abriguei sob sua proteção, também ri de suas piadas, também me deliciei com seus carinhos, também bebi da mesma fonte de paciência e sabedoria? Como confessar que guardo na memória centenas de lembranças felizes e dizer que o amor dele talvez tenha salvado minha infância? E como negar que carrego em minhas veias, em meu caráter e em meu coração todos os pequenos e grandes valores que aprendi com ele, ainda pequena?
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E como dizer a essa menina cansada e triste que toda essa felicidade inocente e infantil só aumentou a minha dor? Como revelar que o pai perfeito foi fraco, desviado e outro, num momento de tresloucada paixão? Relembrar o instante em que a infância se apagou, dentro de um carro velho e sujo? Falar de como lutei com meus sentimentos e de como tentei negar? Será que é possível descrever a surpresa, nos meus olhos e no dele? Falar abertamente do asco e da repulsa que senti pelo meu próprio corpo todas as vezes em que tive de olhar para ele novamente? Do ódio calado e solitário que eu vivi, a cada vez que ele se dirigia a mim com imensa naturalidade, como se nada tivesse ocorrido? De como fiquei confusa, sem saber se era inocente ou culpada, sem saber se era real ou pura imaginação? E de como só foi possível esquecer ao me esquecer dele?
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Como falar de um momento que neguei com todas as forças, que escondi de mim mesma na mais remota gaveta da memória e sobre o qual não pude verbalizar por mais tempo que o tempo de vida dela? De um instante que não pude detalhar nem para o homem que eu amo, nem para os filhos que eu pari? Como quebrar esse encanto de filha por esse pai infeliz, dependente e alquebrado? Que direito tenho eu de destruir a inocência e o amor sincero, como quem saboreia a vingança de tirar dele o que ele próprio me tomou?
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Hoje, já não me importo com o julgamento dos que não entendem meu afastamento. Sinto uma imensa compaixão e solidariedade pelas meninas que se calam como eu me calei. E das que não são ouvidas porque os adultos não querem ou não podem acreditar. O perdão damos a nós mesmos – e para parar de sofrer. Aquele momento já não é imenso, nem é eterno. E já não parece ter importância. Mas o amor, esse não tem volta. Não há nada a ser dito a ele, um pai a quem já enterrei. E a você, minha irmã, não sei o que dizer.

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